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25 fevereiro, 2007

Espelhos...




(...) Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.(...)
Tabacaria. Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos.


As Lâmpadas do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo teu corpo terá luz. (Evangelho de Mateus, 6:22)




Já é noite...
E é à noite que tudo volta ao seu devido lugar.
Quando os do dia dormem e os da noite despertam.
Lá estava ela, de volta a si novamente.
Quem teria sido hoje?
Pegou seu espelhinho redondo. Pequeno, tosco, de borda marron.
Fitou-se. Quantos reflexos ela tivera hoje? Por quantas teria se passado? Quantas teriam usado o mesmo corpo e seus reflexos?
Reflexos... Lembranças
Um parque. Há muito tempo atrás.
Que dia!!!
De tudo o que mais queria era ir no famoso quarto dos espelhos.
Que grandes surpresas estariam reservadas a ela naquele lugar.
Sem grandes tecnologias, luzes e imagens refletidas.
Era um frisson quase infantil.
Paga a entrada, era hora de aproveitar sua liberdade dentro do parque.
Via rostos alegres, ouvia gritos de pavor e alegria, sempre seguidos de risos soltos.
O parque é quase o céu.
E na frouxidão dos pensamentos depara-se de repente com seu pedaço de céu particular. A sua casa dos espelhos.
Quase solta um grito pelo arrepio de prazer que lhe invadiu a alma.
Entrou.
A entrada escura. Medo.
Luzes acendem repentinamente.
Vê-se em um labirinto de reflexos.
Susto.
Os olhos acostumam-se à luz.
Um reflexo oblongo aparece-lhe à frente. Coisa disforme. Cabeça à cima a perder de vista. Corpo fino, aliás, finíssimo que descia espelho abaixo.
Riu
Sim, era engraçado. Olhou para si mesma. Ainda estava lá, a mesma. Mas no reflexo à frente não.
Cansou-se da imagem. Seguiu em frente.
Outro susto. Um ser baixinho, redondo, pernas quase inexistentes, pescoço semelhantemente invisível. O rosto era um círculo cheio de detalhes. Não conteve o riso. Muito engraçada a estranha figura que se lhe apresentava à frente.
Sentiu-se impulsionada à próxima imagem.
Uma surpresa. Imagem curvilínea, bela. Nunca se vira tão bem assim – pensou consigo mesma. Seios fartos, quadris definidos, nossa que coxas. Riu. Sentia-se a própria estrela de cinema.
Quem dera a vissem agora.
Relutou e deixar essa imagem pra trás. Mas a curiosidade foi maior que a satisfação causada por aquele reflexo.
Na próxima imagem estava lá algo bem esquisito. Um tronco raquiticamente minúsculo em cujas extremidades via-se uma cabeça igualmente minúscula e pernas absurdamente grandes. Parou um pouco diante deste reflexo. Mas que absurdo seria aquilo. Pra que serviriam tão longas e fortes pernas?
Seguiu em frente.
No próximo reflexo lá estava diante de si um enorme busto. Escondia atrás de si a cabeça, aliás, todo o resto.
Mas que grande coração seria esse. Ou seria mesmo só doses maciças de silicone? Gargalhadas sonoras.
Deu-se conta que não estava só. Outros olhos a fitaram.
Corou um pouco. Seguiu para a próxima.
A próxima imagem lhe causou grande estranheza.
Um corpo magro, quase linear, e uma grande cabeça, absolutamente desproporcional. Seu primeiro pensamento: Como algo assim poderia sustentar-se?
Viu seus grandes olhos refletidos. A cor tão presente, chamando à ficar próximo, cada vez mais.
E a imagem que viu naquelas grandes olhos lhe pareceu tão familiar. Sim... mais perto. Cada vez mais... viu um rosto amigo, presente, sóbrio. Chegou a ser reconfortante.
Era a sua própria imagem, simples, vista nos seus grandes olhos.
Olhou de lado. Ninguém mais via?
Não, era preciso uma aproximação muito grande. Só ela via.
Afastou-se, reaproximou-se. Sim, ela estava ali.
Ficou reta... era o último espelho.
Saiu pela porta escura. A luz do dia invadia sua íris. Os olhos acostumando-se à claridade. Mas deles não saia sua imagem refletida em si mesma.
De volta ao quarto, à noite, tanto tempo depois, com seu pequeno espelho, que lhe serve de lembrete.
Não importa quantas seja, não importa como o reflexo aparece aos olhos curiosos de quem passa. Não importa a infinidade de vidas que tenha que viver. É alí, no reflexo de seus próprios olhos que ela está. O espelho? É só um lembrete, bem pequeno, que lhe traz a imagem mais pura de si.

por Cau Alexandre