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31 maio, 2007

Entre livros e memórias

Ambos jovens
Ela, menina-mulher. Adolescente desajeitada, magrela de olhos vívidos. Achava-se feia, compensava na inteligência aguçada. Aluna.
Ele, rapaz. Recém formado, primeiro emprego. Professor.
Esperavam professor novo, mas não daquele jeito. 24.
Ela sentada no meio da sala. Equilíbrio entre os CDF e os da Geral. Uma bagunceira-estudiosa. Não se contentava em ser só 'isso' ou 'aquilo'.
Descrente do que via.
Ele: olhos castanhos, tão claro que esverdeavam. Primeira impressão. Não conseguia parar de olhar. Hipnotizada.
Ela: cara de marota. Olhos de ressaca. Boca.
A partir daí o equilíbrio fora esquecido. As aulas de literatura tiveram uma nova freqüentadora assídua das cadeiras fronteiriças. Perto dos olhos, percebeu a boca. Delineada pelo cavanhaque. Um quase delírio. Suspiro.
Feia? Não... desengonçada. Adolescência. Atrevida. Olhar firme. Boca, meu Deus, que boca! Devia ser proibido a alguém tão jovem ser provida de uma boca tão libidinosa.
E por aí foram.
Alencar, Álvares, Dias, Varela e Azevedo... também Alves, o Castro.
E entre as Iracemas e Martins, Helenas e Estácios e Bentos e Capitus... a preferida, seguiram.
Não perdia aula, nem quando a febre era mais forte. Os apelos dos pais... o incêndio interno era maior. A contra-vontade de sair mais cedo. Mau estar, febre.
Descobriu outro prazer. Pedir para sair deu-lhe a visão perfeita das mãos. Grandes. O toque, no pulso. A temperatura... o coração já acelerado acertou o caminho e estava na reta final da garganta. Macia, pelúcia, delicada mão de homem. Delicada? Homem das letras.
Foi pra casa como quem ganhou um prêmio.
Fim de semana de cama, sorriso besta na cara. As mãos não se lhe saiam da memória táctil. Juntou-se a boca e aos olhos.
Retorno.
Augusto, Raul, Aluízio, Machado... Ah! Machado, o de Assis.
Ela passou a devorar-lhe as carnes de papel com o mesmo prazer que os vermes fizeram a Brás Cubas, depois da dedicatória póstuma.
Ele, fino admirador... falava de Machado com que orando, adorando um ídolo.
Ela, como iniciante, devorava-lhe as palavras com ouvidos jovens e sedentos.
Devorava-lhe o sentimento de inquietude.
Ele não a olhava nos olhos. Ouvia estrelas.
Ela perdia o senso. Tremia...
Provas, trabalhos, longos textos. Esses nunca o satisfaziam. Sempre aquém do devido. Zangada. Vontade de escarrar-lhe na boca... mas antes deveria haver o beijo.
Mário, Oswald, Graciliano, Manuel, Drummond.
E uma pedra no caminho do João Gostoso. Final de ano.
Tristeza nos olhos do retrato. Cecília.
As reposições de aulas nunca foram tão boas... sábados agradáveis embalados pelo som da sua voz de quase-homem. 'Quase' por picardia dela. Fomentar.
Correndo os olhos passaram por Clarice, Guimarães e Nelson, o Rodrigues. No qual o seu desejo adolescente esperava demorar-se mais um pouco. Alimentava-lhe a alma latejante. Desdém. Rapidez nunca a agradara.
As férias tinham um sabor agridoce, ou um sem sabor e, finalmente, vieram.
Felizes todos conseguiram seu intuito, era hora de descanso. Guardar livros e lembranças.
E o beijo? Ah! Deve ter sido coisa que Helena sonhou, entre os olhos de Capitu e a boca de Brás Cubas.

Lembranças...

por Cau Alexandre


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Zelia Duncan - Capitu