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16 março, 2008

Um no outro...


"Amar é mudar a alma de endereço"
Mário Quintana

A DONZELA & O DRAGÃO
Cláu Alexandre

Conta uma lenda
Que uma Donzela morava à beira-mar
Caminhava pela areia da praia
E lia poemas olhando o mar

A Donzela olhava o céu
A Donzela olhava o mar
A Donzela só não tinha olhos
Pros moços que a queriam amar

Ela queria um amor estranho
Que em seu coração pulsava
Ela não sabia de onde
Mas sabia que era amada

Um dia caminhava como de costume
Procurando sua pedra de descanso
Quando do fundo das águas emerge
Um terrível Dragão fumegante

Os seus olhos bravos
Seu hálito quente
Suas garras ameaçadoras
Suas asas sem par

A Donzela apavorada
Não sabendo o que fazer
Não se moveu do lugar
Mas o Dragão olhou-a nos olhos
E, enfim, reconheceram-se

A Donzela ainda atônita
Percebeu que não o temia
E que ele não lhe faria mal
Pois, estranhamente, lhe era familiar
Como se o esperasse a vida inteira
E a ele pertencesse

Era seu amor esperado
Escondido entre escamas e fogo
Não um príncipe encantado
Mas o dono do seu amor profundo

A Donzela estendeu a mão para tocá-lo
Ele a princípio recuou
Cena difícil de crer
Uma doce, singela e inofensiva mão feminina
Vencendo pela doçura
o imponente e milenar Dragão

— Eu sabia que me encontrarias
Sempre te chamei
Acendi um farol no peito
E sabia que te guiaria.

Amaram-se de olhar-se
E dia após dia encontravam-se
logo ao raiar do dia
Na praia daquele mar
Ele tão grande, tão forte, tão misterioso
Atrás de suas garras, suas duras escamas e seu fogo
Ela tão doce, delicada, constante
De olhos atentos, sorriso meigo e mão segura

O milenar Dragão ouvia a pequena Donzela
Bebia suas palavras
que como pequenas fagulhas
saídas de sua rosada boca
lhe tocavam o coração

Agora como ouvinte visível
Mostrando-se e sendo visto
Revelando-se e descobrindo
Ele poderia simplesmente
Ficar ali, e ouvir... ouvir... e sentir.

Foi num belo amanhecer
Que o Dragão resolveu
O seu silêncio quebrar.
Olhou a Donzela firmemente
E decidido sentiu que era hora de dizer
— Quero dar-te meu coração.

A Donzela não podendo conter a alegria
Uma vez que seu amado Dragão lhe falava
Feliz pelo que ouvia
Não imaginava o que isso significava

Ele tomou-a cuidadosamente
Levou-a bem perto de si
e disse, o mais suavemente
que um dragão pode ser:

— Tenho direito a uma vida mortal
Apenas por um dia... apenas uma vez na vida
Depois disso morro
Mas posso doar a parte que me é mais cara
A alguém que eu desejar
Posso entregar meu coração
A quem comigo ficar.

Ouvindo aquilo a Donzela chorou
Disse não querer que seu amado morresse
Preferiria ela mesma a morte
A perder seu amor agora presente

O Dragão de sua imponente postura
Nos seus milênios de sabedoria
Fitou-as nos olhos
O mais grave que ele podia
E disse-lhe:

— De que me valeria uma outra eternidade
Se contigo eu não partilhasse
Ao menos na vida um dia?

— Entrego a ti meu coração e não temo
Pois amaste-me antes de me conhecer
Venceste-me com um suave toque da mão
Acompanhaste-me durante todas as estações
E vieste de bom grado sempre ao meu lado
Nada mais preciso pra eternidade
Além de saber que meu maior tesouro
Está contigo guardado .

A Donzela olhou-o firmemente
Fechou os olhos por um instante
E disse em seguida:
— Aceito sua proposta de contigo partilhas
Essa breve existência humana e
comigo carregar parte de ti em meu coração
mas peço-te apenas
o direito a um pedido realizado

O sábio Dragão sorriu
De um jeito que só os dragões sabem fazer
E assegurou-lhe que fosse qual fosse o pedido
De bom grado ele realizaria para o seu amor.

O milenar Dragão pôs a Donzela no chão
Ergueu as escamas que ficavam à altura do seu peito
Retirou de lá o coração pulsante
E mandou que a donzela o tocasse

Cena repulsiva seria
Se não fosse adornada de tão grande amor
E ao toque da delicada mão da donzela
O coração em estrelas se transformou
Uma dorzinha ela sentiu no peito
Parecia que arrancavam-lhe um pedaço
Fechou os olhos de dor
E então sentiu as mãos quentes que lhe seguravam

Abrindo os olhos viu um rapaz
Olhos escuros que lhe fitavam
E com um sorriso lhe saudava
O hálito quente que tão perto lhe dizia:

— Sou eu meu amor, aquele a quem amaste
Mesmo quando só o exterior conhecias
Agora faço-te minha, assim como fui feito teu.
— A dor que sentis-te era parte do meu coração
Tomando lugar junto ao teu
Pois parte do teu agora também é meu
E juntos permaneceão para sempre

Dali os amantes sumiram
E em certeza de amor sem fim amaram-se
Trocando carinhos, beijos, olhares
Uniram-se fazendo-se um só

Sublime foi o encontro dos corpos
Não mais que havia sido o encontro das almas
Já não se sabia quem era a fera ou a bela
De tão unidos estavam

Deleite, transbordamento
Cansaço, descanso
Palavras que se multiplicavam
Tempo que se esvazia

Quando já no céu as estrelas se escondiam
Os raios de sol despontava muito além... longe ainda
Aquele que um dia fora dragão
Toma as mãos de sua amada
E beija-a com um beijo quase sem fim

Contorna-lhe a face com as mãos
Toca-lhe toda a estrutura do corpo
E por fim fita-lhe os olhos
— Não chores... é hora de ir.

Mas certamente nunca irei
Pois fico em ti
Deixo em ti minha marca
Pra que nunca te esqueças de mim

A Donzela mais que depressa
Lembrou ao seu amado que um dia fora dragão
Que ainda restava-lhe o desejo
E docemente ao ouvido
sussurrou-lhe o pedido

O dragão em forma de homem sorriu
E lhe disse que seu pedido seria realizado
Novamente beijou sua Donzela
E no beijo um manto de luzes os cercou
e um mar de estrelas os envolveu

E ambos, Donzela e Dragão
Subiram em meio à luz
Enfim, juntos eternamente

E dali em diante, naquele lugar à beira mar
As estrelas cintilantes
Brilhavam mais ali
Que em qualquer outro lugar


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Imagens - Google
Edição - Cláu Alexandre
Música - JMauro