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30 julho, 2012

O Descobridor (1)



DO MEU QUINTANÁRIO AMOR

Cau Alexandre

Hoje, 30 de julho, é aniversário do meu grande amor. Um irmão de sensibilidade, muito mais raro que um irmão consanguíneo. Hoje, se vivo, ele faria 106 anos... vividos e literários.
Dele e com ele tenho inúmeras lembranças. 
Começam na época em que ele era um autor "escolar". Lia seus 'textinhos' nos meus livros e ficava encantada pela capacidade que aquele senhor tinha de dizer tanto em tão pouco espaço, com tão poucas letrinhas.
Muitos anos depois, encontro um Quintana encarado por mim mais seriamente. As aulas de Estilísticas sempre me pareceram como uma mesa branca de adivinhação cheia de técnicas e teorias, mas que no fim vinha um tal Quintana e falava e dizia e rimava só quando queria e era ácido sem zanga, irônico, sem maldade... E então ninguém sabia, só estava certo que era Quintana.
Lembro da admiração na voz da minha mestra enquanto recitava:

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho! 2

Como se pode dizer tanto, com tão pouco? Como poderia entender tanto? Como?
Os anos se passaram. A minha admiração só aumentava. E como sou de amor profundos, jamais o abandonei. Trazia-o junto a mim com os amores tão antigos quanto ele, como o de Pessoa e Machado, quanto dos novos, como Proust e Tolstoi. Aos longo dos anos, muitos amores. Mas, Quintana sempre foi livre ao amar. Muito sereno me falava em 'Bilhete' e me dizia::


Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...3

E assim, ia me deixando livre para amar, amar Érico e Luis Veríssimo, amar Saramago, amar Cecília e Clarice. Amar Dostoiévski, Gabriel Garcia Marques, Drummond, Vinícius... Ah! como amei Vinícius. Ah como amei com Vinícius. E Quintana ainda estava lá... e me dizia:

O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas…
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.4


E com todos eles cresci, embora já fosse "grande" e um dia me atrevi a escrever. A tentar ao menos. E pensei, nunca serei como aqueles a quem amo, mas posso ao menos escrever o que sinto.
Não foi sem surpresa que me deparei com minha primeira decepção: "Você não serve pra escrever poesia. Não tem técnica. É infantil e tolo. Não é bom". Olhei pro meu professor, como a criança que descobre que não fez o desenho certo na aula de desenho livre. Decidi ser só leitora, admiradora, amante de muitos poetas... Jamais escritora.
Até ser impelida pelo meu Quintanar amor dizendo: "Esquece todos os poemas que fizeste. Que cada poema seja o número um." 5  e  "A poesia não se entrega a quem a define." 6
E me voltei ao papel...
Passei a ser uma necessidade crucial de escrever, e ainda meu Quintana me dizia:


Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.7


E a afogada era eu.
Um dia, abri a porta de casa e fui ao seu encontro com as palavras na minha mente:

A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali…
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando! 8


E fui ver meu amor. Há 6 anos. Na Casa Rosada, antigo Hotel Magestic, última morada do meu poeta, hoje, Casa de Cultura Mário Quintana. No dia 30 de julho de 2006, em que ele completaria 100 anos, eu estava na janela do seu quarto, olhando suas fotos, sua escrivaninha, o retrato da Bruna Lombardi que ele guardava com carinho. A sua tangerina (lá no sul, bergamota), a pontinha de cigarro, o esforço de tantos para que estivesse tudo como ele deixou. 
Senti um frêmito, quando meu reflexo atravessou o vidro e me pôs do lado da sua cama, pertinho da sua cadeira. Eu entendi... e não havia outro lugar no mundo que eu quisesse estar. E eu queria respostas, mas ele me dizia:

"A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas." 9

Ainda não sei como saí de lá. Era meu lugar, era familiar. Era o que eu queria, onde tinha que estar. Mas na vida, nada é como achamos que deveria ser. Porque a vida é como um poema:

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…10


E voamos... Ele, eu e os nossos poemas, porque é necessário mais que viver, é necessário sonhar. E sonhando com os olhos bem abertos, critica e acidamente conseguimos ver o que realmente é belo. A vida!

As pessoas sem imaginação
podem ter tido as mais imprevistas aventuras, 
podem ter visitado as terras 
mais estranhas... 
Nada lhes ficou. 
Nada lhes sobrou. 
Uma vida não basta apenas ser vivida: 
também precisa ser sonhada 11

Hoje sinto saudades, e lembro do que ele me ensinou:

Essas duas tresloucadas, a Saudade e a Esperança, vivem ambas na casa do Presente, quando deviam estar, é lógico, uma na casa do Passado e a outra na do Futuro. Quanto ao Presente - ah! - esse nunca está em casa. 12

Mas eu sei, bem dentro de mim, que saudade e esperança vivem aqui juntas de mim, e junto a elas carrego meu amor Quintanar. Nunca esquecido, nunca mudado. Porque Ele e eu sabemos que não se muda a essência... 

Não importa que a tenham demolido: 
A gente continua morando na velha casa em que nasceu.13

Por isso, Quintana querido... amar-te-ei em sussurros e baixinho serás sempre o meu amor e jamais te esquecerei.

copyright©caualexandre20112
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* Todos os poemas presentes nesse texto são de Mário Quintana.
1Alusão ao poema de mesmo título de Mário Quintana.
Ah, essa gente que me encomenda
um poema
com tema...

Como eu vou saber, pobre arqueólogo do futuro,
o que
inquietamente procuro
em minhas escavações do ar?

Nesse futuro,
tão imperfeito,
vão dar,
desde o mais inocente nascituro,
suntuosas princesas mortas há milênios,
palavras desconhecidas mas com todas as letras
misteriosamente acesas
palavras quotidianas
enfim libertas de qualquer objeto
E os objetos...

Os atônitos objetos que não sabem mais o que são
no terror delicioso
da Transfiguração!



"Poeminha do Contra".3 "Bilhete". 
4 "Poeminha Sentimental"
"Arte Poética"
6 "Cuidado"
7 "Emergência"
8 "A verdadeira arte de viajar"
9 "As indagações"
10 "Os poemas"
11 Epígrafe do livro "Lili inventa o mundo"
12 "Confusão"
13 Quem disse que eu me mudei?