FICA COMIGO ESSA TARDE
Ilídio Soares
A Cau Alexandre
Possuíamos alma, mas a possuíamos só por instantes, em
potências atravessadas como conjugando vislumbres com açoites. E
dizíamos coisas que nos faziam rodar sem vínculos, deixando a carne
exposta e consciente de estarmos, de fato, nos consumindo. E como clandestinos,
subterrâneos do que restou daquele sentimento, os socos e os adornos iam
conosco, cativos, fundos, da garganta ao mais nada que não se esconde depois
que finda o barulho de existir. Num curto-circuito de ruídos de seres que um
dia fomos, e do qual não esperávamos muito, éramos nossos e isso nos bastava
porque assim que era posto.
Não é fácil, portanto, experimentar-nos agora além
dessa epígrafe. Tateando sobre o que nos distingue, com má vontade, mas indo de
encontro ao que nos vence e corrói os últimos argumentos, os atos cordatos e os
finos traços que sumiram. E apesar do mal estar, querendo morrer em paz num
mundo que já não nos pertence, imersos numa linguagem de círculos, esvaziados
de um sentimento que não é mais permanente, aos solavancos fomos insistindo.
Em alguma parte abandonamos as idades, os palmos de
estrada, os arreios, e fomos ficando mais um pouco pra ver se espantávamos o
hálito dos reclamos e haveres, em horas que às vezes se entrecruzavam com
nossos antigos pertences. E do vazio brotavam ideias que nos faziam regressar
aos dias que éramos mais resistentes. E por não sabermos enterrar aquilo que
nos estava enterrando, tudo ao nosso redor aos poucos foi se desfazendo, e
doendo. Desorientados e cansados parecíamos aves felizes e retardatárias rumo
ao poente.
Há muito tinha deixado de ser pacto para se tornar
subversivo. Com cada um à sua maneira rastejando no fosso, entre moitas e
sonos sem perceber que estávamos explodindo. E essa era a nossa coragem, a
única que nos restava, de dormir mais cedo para não vermos a noite que se
aproximava. Sem estrelas e escura, anunciando que jamais partiria só pra nos
fazer sofrer uma eternidade.
Dobrados e sem conseguirmos nos separar por dentro, hoje
somos mais do que uma paisagem na mente. Dividindo-nos em partes por não
sabermos como reter um todo que se esvai, indo a outra coisa que age mudando
independente da gente. Somos a antimatéria das vontades inconclusas, por isso
reduzimos os apuros e escondemos as culpas porque sabemos aonde começam e
terminam. Sob outros nomes disfarçamos o que nos possui, nada mais nos
desconcerta, tudo nos é intimo. E da antimatéria nos transformamos numa
tardante metáfora mais concreta, recolhida de fusos, mas sucessiva nos léxicos
que não se fundem, para finalmente conseguirmos nos tornar uma simples e tão
desejada pergunta: “Fica comigo essa tarde?”
copyright©Ilidio Soares 2012