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01 julho, 2006

Uma pátria de chuteiras...


... E me perguntam porque na copa do mundo eu não assisto aos jogos, embora torça pelo Brasil, porque eu não entenda no que realmente mude em se tirar o Ronaldo 'Fenômeno' e pôr o Robinho em campo.

Também não entendo porque é mais importante um gol que um voto consciente, porque o primeiro faz milhões de pessoas delirarem, chorarem, gritarem, e o segundo, mesmo podendo mudar a vida da nação inteira, é encarada com descaso.

Também não entendo porque os calos do Ronaldo tomam páginas inteiras dos jornais, enquanto a ética é completamente esquecida e matadores são soltos por uma justiça antiquada.

Eu entendo de nacionalismo, alegria, povo unido. Só gostaria que isso acontece mais vezes e não só de quatro em quatro anos, na frente pra televisão, e alienando o povo...

Não estou feliz... mas quem sabe agora 2006 comece de verdade...


Eu... sou brasileira, com muito orgulho, com muito amor!


A pátria de chuteiras


(...) é preciso não esquecer que o país do futebol é também o país dos contrastes sociais, de problemas imensos que não serão resolvidos se a gloriosa Seleção nos trouxer o hexa.

Chegou a Copa do Mundo, onde o Brasil vai jogar tentando ser hexacampeão. O país vai parar e seus mais de 170 milhões de habitantes vão esquecer de tudo, até de comer, de beber e de amar, para ficar pendentes diante de um televisor acompanhando o balé dos meninos em campo. Como dizia o saudoso Nelson Rodrigues, "...é a pátria de calções e chuteiras dando rútilas botinadas em todas as direções!"


Quem quiser trabalhar não vai conseguir, quem quiser silêncio para pensar, meditar ou simplesmente dormir também não vai. Seremos todos obrigados a compartilhar os gritos de ansiedade da torcida nervosa que rói as unhas e chora e se agita diante do jogo. Ou a ouvir os foguetes a cada gol da seleção verde-amarela. Ou a ser contagiados pelo desespero que toma conta do país inteiro a cada gol que o adversário fizer contra nós.



As empresas e repartições públicas já se resignaram: meio expediente ou expediente nenhum quando houver jogo do Brasil.Não adianta, ninguém vai trabalhar mesmo. E quem tentar, não conseguirá render. É o destino da pátria sendo decidido por 11 pares de pés que se movimentam em campo. E por duas mãos do goleiro que agarra as tentativas de gol do adversário.


Por sua perícia no esporte nacional, por sua quantidade de bons jogadores, é verdade que o Brasil se tem feito respeitar no mundo inteiro. E isso faz bem ao nosso ego em baixa, ao nosso complexo de cachorro vira-lata, como diria uma vez mais Nelson Rodrigues. Faz bem ser contado entre os melhores do mundo num momento em que vamos tão mal, com a esperança do povo fazendo água por todos os lados, com o desânimo e o desalento tomando o lugar da contagiante alegria, com a violência engolindo a tradicional cordialidade do brasileiro.


Por outro lado, a Copa do Mundo e uma eventual vitória do Brasil podem ser uma perigosa tentação de euforia falsa e efêmera, assim como de acomodação e um dormir sobre louros que, na verdade, não existem e já nasceram reduzidos a pó. Os da minha geração não se terão esquecido do engodo preparado pela ditadura militar no governo Médici, que fez com que a vitória do Brasil, conquistando o tricampeonato no México, desviasse a atenção da opinião pública para as barbaridades que aconteciam nos porões do regime.


Enquanto a população gritava "gol" e dava vivas à Seleção Campeã, nas prisões brasileiras jovens de ambos os sexos e de curta idade eram torturados até a morte; mulheres grávidas perdiam os bebês devido ao sofrimento físico e moral por que passavam. Apenas a voz da Igreja, na pessoa de seus bispos, se levantava para denunciar este estado de coisas e defender os direitos humanos. E enquanto isso os brasileiros gritavam "gol" e pediam "bis".


Uma vez conquistado o título, foi a vez de a economia montar e consolidar sua mentira. O famoso "milagre brasileiro", que fez a classe média acreditar que era rica, esburacou para sempre as finanças do país e até hoje pagamos as amargas conseqüências e o preço alto daquele embuste. Ao "milagre" de curta duração, seguiram-se a inflação galopante e a pobreza crescente, sempre regados com discursos que diziam ser necessário que o bolo crescesse primeiro para depois reparti-lo.


Enquanto isso, a Seleção voltava do México e era aclamada pelas ruas. E o fosso entre ricos e pobres aumentava.E toda uma geração era perseguida, torturada e morta. E o povo brasileiro se alegrava com seu aparente triunfo, com sua estrela brilhando, sem saber que era cadente.


É tempo de Copa do Mundo e é justo e necessário torcer e muito por nossa Seleção. Vale tudo: chamar o juiz de ladrão, roer as unhas, arrancar os cabelos, gritar de alegria pelo gol feito e de angústia e frustração pelo gol tomado.


No entanto, é preciso não esquecer que o país do futebol é também o país dos contrastes sociais, de problemas imensos que não serão resolvidos se a gloriosa Seleção nos trouxer o hexa. Importa compartilhar a alegria do povo com essa festa democrática que é um campeonato mundial de futebol. Mas fazê-lo sem esquecer que o país do futebol tem grandes problemas que não serão solucionados com a perícia dos chutes do Fenômeno ou com o gênio gaúcho do outro Ronaldinho. Apenas com muito trabalho, espírito comunitário e desejo de justiça.


(*) Artigo vinculado dia 17/06/2006 no Jornal O POVO

MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER é teóloga,
professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio;