05 outubro, 2014

Pérolas de Afrodite - 3. Reencontro

REENCONTRO
Cau Alexandre   

E estavam lá. Sentados de frente um pro outro, naquela mesma cozinha que guardava tantas lembranças.
Ele fazendo o seu famoso café e a fumaça densa subindo em círculos pequenos, culpa do frio.
Do frio que ela sentia na ponta dos dedos, mesmo estando quentinho dentro da casa. Frio que ela sentia dissipar-se do rosto, que há pouco estivera avermelhado pelo vento cortante que a fazia corar, mesmo ela sendo morena. Era uma noite fria realmente. Culpa do frio ele se oferecer para fazer um café.
E lá estavam eles conversando como há muito não faziam. Ela sentada a um canto da mesa, meio encolhida, como se o ato de tirar o casaco grosso a tivesse deixado meio despida.
— Ainda com frio? Daqui a pouco o aquecedor começa a se fazer sentir. Diz ele tão docemente com um sorriso de moleque que desdenha das meninas quando estas se comportam mais fragilmente.
Ele já tirara o casaco, o cachecol, e ameaçava tirar os tênis pra ficar de só de meias.
— Ainda com esta mania de não gostar de calçados dentro de casa?
— Ah! Velhos hábitos não se mudam assim.
Ambos riram.
Aquela conversa era no mínimo estranha. Pois ambos se comportavam como estranhos à presença um do outro e, em contrapartida, partilhavam de tanto conhecimento sobre hábitos, manias e tudo mais do outro.
— Ainda só toma café com leite?
— E tem jeito melhor?
— Claro que tem. Puro... É o jeito de macho!
Caíram na gargalhada. A mesma cara de ‘pateta másculo’ de anos atrás.
Ela riu dele fazendo poses 'másculas' e deixando os músculos salientes, como se fosse uma exibição de “Mr. Universo”. Até mesmo notou que os músculos estavam mais salientes que antes.
— Tem malhado? Querendo impressionar as meninas?
Ele corou um pouco diante do comentário dela. Voltou ao “normal” e apenas acenou que sim com a cabeça.
— É para ficar em forma quando a velhice chegar. Riu.
— Bobagem... Ainda demora pra envelhecer.
— Que nada, já vou comprar uma bengalinha.
Riram.
Ele se vira e fica observando a geladeira como se algo de muito lindo e precioso estivesse lá dentro a necessitasse de sua total contemplação.
Ela fica olhando ao redor, cada copo, cada pote, cada cheiro daquela cozinha lhe era familiar. Mudara apenas alguns objetos, aqui e ali uma toalhinha desconhecida. Panelas novas.
— Andou deixando alguém arrumar a cozinha? Disse em tom mais grave. Talvez porque não tenha gostado sinceramente de notar as mudanças avistadas.
— Foi a Tereza, ela tem mania de toalhinhas e de mudar as coisas de lugar. Disse ele sem tirar a cara da geladeira, como se lá tivesse encontrado refúgio dos olhos dela.
— Hummmm. Tereza?
Ele, rapidamente, se vira pra ela como se houvesse esquecido algo de muito importante e valioso entre as duas informações.
— Sim, Tereza, a diarista.
— Nossa! Finalmente uma diarista. Ela ri. Talvez mais aliviada em saber que Tereza não era a namorada atual, já que aliança ele não carregava e pensando bem, casado não estava.
— Precisei. A vida ficou mais corrida ultimamente, você sabe... Emprego, correria, não dava conta. E eu não sou lá o melhor dono de casa.
Ela concorda com uma risada sonora, de quem já o havia visto fazer muitas palhaçadas e trapalhadas enquanto passava o aspirador de pó pela casa.
Ele empurra a xícara até perto dela, já com café. Ela serve-se de leite. Ele começa um ritual bem conhecido por ela. Olha as linhas de fumaça subindo pelas bordas da xícara. Aspira o aroma do café. Parece alimentar-se daquele cheiro, parece aquecer primeiro a alma pra depois degustar em pequenos goles o seu néctar fresco.
Ele se depara com os olhos dela fitando-o e sorri amarelo.
— Você sempre me olha fazendo isso. Nem é novidade.
— E não mudou nada.
Pequeno silêncio, olhos se movem pra dentro das xícaras, como se olhassem pra um oráculo de onde sairia a resposta para a próxima frase que se perdeu da boca de ambos.
— Parece até um milagre encontrar você lá na boate depois de tanto tempo. Diz ela encontrando o rumo da conversa.
— É sim. Viajando muito. Mas eu vou lá de vez em quando com uns amigos. Acho que nunca nos encontramos por ironia do destino.
— Você não crê em destino.
— Não cria.
— Já crê? Diz ela com olhos vivos de espanto, de quem descobriu algo novo.
— Não exatamente — diz ele devagar, como aquele ar professoral que lhe é peculiar quando quer explicar alguma coisa — mas já acredito que nada acontece por acaso.
Os olhos deles se encontram. Havia algo naqueles olhos que o deixavam tonto.
Cristina não tinha mudado muito em três anos. Estava um pouco mais magra, os cabelos mais claros, mas isso não era novidade porque ela sempre gostou de brincar de mudanças com a cor dos cabelos. Ela estava tão linda com aquela blusa amarela. Ele não pode deixar de perceber o volume dos seios e isso lhe perturbou um pouco, baixou os olhos, não sabia bem o porquê Envergonhou-se dele mesmo. Como poderia pensar nisso naquela hora?
Cristina também olhou para Bernardo. Sempre o achara tão charmoso. Embora a diferença de idade não fosse tão grande assim ele desde cedo trazia aquele olhar maduro, ponderado, calmo. Os olhos traziam um pouco mais as marcas do tempo. “Mas três anos é tão pouco, ou tanto?”, pensou a moça consigo mesma.
Em frações de segundos explorou-lhe os braços, que naquela malha branca pareciam mais fortes. O peito mais saliente. A boca. Essa era a mesma. A boca de Bernardo sempre lhe causara fascínio, desde a primeira vez que se viram anos atrás. Foi a boca o motivo para ela uma noite, estando entre as amigas, perder a vergonha e mandar um bilhetinho para Bernardo que se encontrava recostado no balcão do bar com uns dois conhecidos:
“Bela boca... ela sabe fazer algo mais que beber vinho?” dizia o bilhetinho entregue pelo garçom.
Na mesa das “meninas” um alvoroço que denotava o quanto as mocinhas já tinham tomado de vinho e outros aperitivos. Bernardo não pensou muito, pediu outra taça de vinho e dirigiu-se a mesa. Como toda a naturalidade que ela tempos depois descobriria lhe era familiar. Deu boa noite, e curvando-se para pôr a taça de vinho sobre mesa de frente à Cristina, aproveitou para sussurrar algo ao seu ouvido que a fez rir timidamente.
Cristina levantou-se, e guiada pela mão de Bernardo foi até a pista de dança, onde ficaram muito tempo...
— E sua vida como está?
A pergunta quebrou o transe em que Cristina estava naquele momento. Pedaços de lembranças correram pela cozinha até ela se dar conta da pergunta de Bernardo.
— Bem. Corrida também. O mestrado tomou muito do tempo.
Conversa fiada pra quem já não conseguia disfarçar o nervosismo de estar novamente na mesma cozinha que fora palco de tantos meses de convivência mútua em um namoro que passou tantas vezes ali, naquela cozinha.
E veio então a pergunta dilacerador.
— Você esqueceu-me?
— Que é isso Cristina. Claro que não.
— Afastou-se depois do rompimento.
— Não tinha porque ficar perto. Foi decisão mútua, você lembra.
— Impossibilidades.
— É. Caminhos diferentes.
— Precisava ir. Era a chance do mestrado, você sabe.
— Eu sei.
— E você tinha a chance de crescer na empresa lá no escritório da cidade.
— Eu sei.
História já conhecida, tantas vezes recontada e revivida. Tantas vezes passada em revista para se saber se foi a melhor escolha.
— Você precisava ir, eu também. Foi isso.
— ...
Um silêncio dolorido inundou a cozinha junto com as últimas linhas do café que esfriava na xícara, agora já meio abandonado, diante da inércia que tomou conta daqueles dois corpos sentados um de frente ao outro.
— Mas eu nunca esqueci você. Você sabe disso.
— Eu não sei. Você sumiu.
— Não sumi... Eu só me afastei um pouco. Tinha que digerir, ou então desistiria de tudo.
— Não desistiu.
— Não.
Olhares duros e doloridos se cruzam diante do termo.
Lembram-se do café.
— Melhor tomar o café, vai esfriar e você vai ficar com frio. Se bem me lembro, não adianta nada aquecedor pra uma ‘lagartixinha’ gelada feito você.
Ela riu. O ‘apelido’ com que ele a presenteara justamente por causa dos dias frios e das suas constantes reclamações de pés gelados.
Riram da lembrança mútua.
No final do riso olhavam-se. Pensando sinceramente se havia sido uma boa ideia o convite de visitar a casa dele. Na boate, depois do encontro inesperado, dos drinques e de muitas horas de conversa, o convite parece tão natural. Tomar um café em casa. Era mais quente e poderiam conversar à vontade. O dia seguinte era domingo mesmo. Pareceu uma boa ideia. Agora duvidavam disso.
— Por que não casou? Perguntou Cristina procurando um ponto no chão.
— Não sei. Não apareceu ninguém que me despertasse a vontade. E você?
— Não tinha tempo de pensar. Risos.
Ele admirava essa capacidade dela em se sair sem nada dizer de situações das quais ela não queria falar.
Ele soube por amigos em comum que ela quase noivara com um professor.
— E o professor?
— Como você fica sabendo dessas coisas? Ri sem graça.
— Tem sempre alguém ‘on-line’ que sabe uma notícia, que conta pra alguém, que acaba chegando aos ouvidos. Riem.
— Não deu certo. Não era pra ser. Diz ela ainda procurando insistentemente o ponto no chão.
E na busca do ponto ela se depara com as mãos dele pousando sobre as suas e repentinamente depara-se com aquele par de olhos que tanto lhe fez estremecer um dia. Não era diferente agora. Um calor subiu-lhe pelo corpo, parecendo que o rubor retornava-lhe à face, mas não mais por frio. Já não sabia se fora uma boa ideia aceitar o convite de estar ali, no lugar onde tantas lembranças estavam.
Mesmo assim, ela não recuou, enquanto sentia as mãos de Bernardo tocando as suas tão suavemente.
Também não recuou quando deliberadamente fechou os olhos e nesse momento sentiu a boca que ela tanto gostava roçar nos seus lábios. Parecia ter sido ontem mesmo o último beijo. A mesma textura doce dos lábios, o mesmo veludo da língua que agora roçava na sua. O mesmo hálito que não fora esquecido.
O beijo era recíproco. Apaixonado. Havia um ‘que’ de muita saudade, uma intensidade crescente. As mãos já não se continham em segurar as outras mãos. Aos poucos já começavam timidamente a passear pelo corpo do outro. Um desejo já a muito guardado, e até pensado extinto, aflorou.
Não havia mais lugares pra palavras, lembranças, olhos tristes. Só havia uma saudade do toque que era gradativamente sentida de maneira mais ávida.
As mãos pareciam saudosas, pois buscavam recantos já antes conhecidos, como se os corpos fossem campos já explorados, mas que aos poucos eram redescobertos. E o toque era sedoso, como mil pétalas de rosas descendo em ondas roçando à flor da pele.
Ela nos braços dele. Ele a levando por um caminho tão já conhecido dos dois.
Não era só mais uma vez, era o reencontro das almas em toques e delírios. Havia uma sede um do outro, como se a vida parasse ali, naquela madrugada, e a única coisa importante que restava era a certeza que aquele era o lugar e aquela era a hora.
Ele retirando cada peça de roupa dela e olhando feito menino quando olha pra vitrine de doce. Olhar faminto, espantado, saudoso.
Ela perdida nos pensamentos que gritavam na sua mente: “Como fiquei tanto tempo sem ele?”.
Entre um beijo e outro, os olhos se achavam e parecia que o corpo tremia com a visão que havia. Não era sonho, eles estavam ali mesmo. Sedentos, saudosos, quentes, ferventes de todo aquele desejo.
Gemidos, vontades... Eles sabiam exatamente o que fazer, onde buscar seus desejos e prazeres e onde ofertar tudo aquilo que queriam.
Encaixes perfeitos, fome e vontade comer, sede e água fresca, delírios, gemidos, toques. Horas de puro êxtase talvez intensificadas por todo tempo que foi aguardado, ou porque, na imaginação de ambos, aquilo era um sonho, e a qualquer hora iriam acordar. Tinham que aproveitar o máximo de tudo do outro, do sonho.
Suor, saliva, amor liquefeito e forte, sem vontade de parar de jorrar.
Exaustão de corpos, disposição das vontades.
Beijos quentes que marcavam as pausas. Olhos que não se distanciavam, mãos que acariciavam. Entrelaçamento... Sono... Olimpo.
Os olhos abrem devagarzinho. Nebulosas tomam conta da sua retina. Estaria no seu quarto no apartamento. Porque tinha que despertar?
Não, não era seu quarto. Um sorriso delicado lhe toma as faces. Estava mesmo ali. No quarto que um dia chamava de ‘nosso’. Fechou os olhos, queria voltar a sonhar com os toques, o cheiro, as mãos, a boca... Mas, onde ele está?
Cristina sentou-se num sobressalto puxando a coberta pra cima de si. Um pudor infantil que ataca as mulheres sem que elas percebam que cobrem aquilo que foi detalhadamente desvendado por horas e já não há mais segredo em seu corpo despido. Talvez o frio, quem sabe.
Ela olha ao redor, o que teria acontecido? Onde será que estava Bernardo?
De imediato a porta do quarto se abre. E aquele moço com quem ela sonhara a noite toda apareceu entre as frestas de luz. Bandeja nas mãos. Café, biscoitos e uma flor.
— Fiz café. O dia está frio.
Ela lhe sorri de volta sem dizer palavra alguma. Como se não quisesse quebrar o encanto daquele momento mágico.
Ela puxou o cobertor num delicioso convite ao seu doce moço que agora pousava a bandeja na cama e sentava-se ao seu lado. Ela recostada no seu peito. Agora já ambos com suas canecas de café.
Não havia necessidade de palavras. Não se sabia mesmo se houve um ontem, ou se haveria um amanhã. Já não importava.
Na verdade, mais parecia que o intervalo já não existia. Que fora a poucas horas que o bilhete atrevido, movido à vinho, tinha chegado às mãos dele. Parecia que ainda ouviam a música que tocava durante a dança. E ainda assim, parecia que estavam ali há décadas, juntos.
E no entrelaçar dos pés aquecendo-se mutuamente ficaram contemplando a doce fumaça do café que subia em formas desconexas. Eles já não se perguntavam o que fora, nem porquês, nem o que seria dali em diante. Já não importava o tempo. Já não havia planos.
E ali, só eles dois sabiam como parecia mágico esse momento em que o tempo parece parar e só se vê mover aquela adocicada fumaça do café.

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(Postado em 28 de maio de 2007)